08/02/2006

Saco de Palavrões



Dia desses entrei num bar aqui perto de casa para comprar cigarros. O Ernesto estava lá, sentado, com a filha. De repente, grita para o menino que serve as mesas:

- Ô pó-de-traque! Tá fazendo o quê aí, me olhando com essa cara de bunda? Vai lá naquela merda de geladeira e me traz uma porra de uma cerveja!

Ernesto sempre foi assim. Um sujeito capaz de acomodar muitos palavrões numa única frase. Mas este não é o seu maior mérito, e sim a irritação que este seu "talento" consegue provocar em Violeta, a filha mais velha.

- Papai, por favor, dá pra falar como gente pelo menos quando estamos fora de casa?

- Vai a merda, vai Viô! Vai querer me ensinar a viver? Eu falo como quiser e quem não gostar que vá pra puta que o pariu que, no seu caso, é aquela bosta que casou comigo. Ah, se orienta!...

- Papai! Dá pelo menos pra você falar um pouco mais baixo?

- Não! Não dá. Especialmente quando eu sei que isso te aborrece. Você queria um outro tipo de pai? Pois não vai ter. Já é tempo de se acostumar com o meu jeito sacana e desbocado de ser...

- Ô pó-de-traque! Eu pedi cerveja e não xixi. Esta cerveja que você me trouxe está quente. Aproveite o design da garrafa e enfia ela no rabo. Depois me traga o que eu pedi: uma cerveja estupidamente gelada.

- PAAAAI!!!

- Vá para casa, vá Viô! Não encha o meu saco!!!

Recebo meu troco e tomo meu caminho sem nem ao menos dizer um Oi! para Viô. Além do constrangimento que seria para ela perceber que alguém que conhece presenciara a cena, eu correria o risco de "disparar" mais meia hora de uma conversa recheada de palavras de baixo calão naquela "coisa" sem botão de off que a menina chama de pai. Que cruz!...

Credo!!!

ju rigoni



"[...] é permitido a todo indivíduo que tenha consciência da verdade regularizar sua vida como bem entender, de acordo com os novos princípios. Neste sentido, tudo é permitido [...] Como Deus e a imortalidade não existem, é permitido ao homem novo tornar-se um homem-deus, seja ele o único no mundo a viver assim." - F. Dostoiévski - O diálogo com o demônio (in Irmãos Karamazov, 1879)


Nascido no Vão Central

O homem pára o automóvel no vão central da ponte Rio-Niterói. Sai do carro sem pressa. Tem o cuidado de trancar o veículo. Agacha-se junto a ele. Tira os sapatos. Sobe na mureta. Abre os braços, olha para o céu e se lança no vácuo que o separa da morte.

Os carros freiam e as pessoas saltam para olhar, curiosas, o homem que escolhera encarar os 70 metros que separam a mureta das águas poluídas da Baía de Guanabara. Nada vêem. O homem desapareceu como surgiu. Tudo muito rápido. Tudo muito limpo. Sem senões...

A polícia chega e já investiga a placa do carro e seu interior. No porta-luvas, uma caixa de lenços de papel, um revólver calibre 38, uma flanela, um blister contendo aspirinas, um maço de cigarros, um isqueiro, duas canetas, um bloquinho. Vazio. Nem uma palavra.

No console, as fotos de duas crianças sob os dizeres "Não corra, papai." Pendurado no espelho retrovisor um chumaço de cabelos louros amarrado com fita cor-de-rosa e um sapatinho tricotado em lã azul-bebê. No banco do carona uma garrafa com água mineral sem gás pela metade, que o policial destampa e cheira, e uma bolsa, tipo pochete, com o fecho aberto e vazia.

- Provavelmente ele colocou todos os documentos no bolso..., - reclama o policial.

No chão do carro uma bola colorida de criança e um pé de sapato feminino. No banco de trás, um "surrado" Dostoiéviski e uma agenda que o policial, sem nenhum cuidado com as impressões digitais, vai folheando em busca de alguma pista imediata.

- Droga! Não é dele. Parece a agenda de uma adolescente...

Lá em baixo, já está uma lancha com homens mergulhando em busca do estranho suicida. Aqui em cima, os monitores da ponte obrigam o trânsito a fluir para evitar o engarrafamento que já vinha se formando em razão da mórbida curiosidade.

O reboque vai chegando e o policial parece ter, finalmente, encontrado alguma coisa, bem debaixo do assento de motorista, - um bilhete escrito em letras de forma.

"Este carro não me pertence. Eu o roubei para chegar até aqui. O Dostoiéviski é meu."

O policial lê e relê o bilhete num interminável coçar a cabeça...

- Ô Antenor!... O que é dosto... Dosto-i-é... Dostovisqui... Ah, deixa pra
lá! O cara devia ser doido. Isso deve ser nome de alguma droga que a gente
ainda não conhece ...


ju rigoni


Uma Cena

As luzes, todas elas, convergiam para o casal junto à cama. Aqui, na escuridão, jaziam o diretor, dois assistentes de direção, o iluminador, os assistentes de iluminação, dois maquiadores, um assistente de figurino, dois cabo-man, a camareira da atriz, e mais quatro profissionais que não consegui identificar.

O silêncio era silêncio. Ouvia-se apenas as instruções do diretor ao casal. Este se movia no ritmo dos mandos e desmandos dele:

- Olhem bem um nos olhos do outro. Vocês estão apaixonados. E finalmente estão sós. Não vão perder tal oportunidade. Fulana, tire lentamente o robe. ENTREGA, fulana. Eu quero ENTREGA TOTAL. Você está com cara de quem está com fome...

Provavelmente a atriz, a fulana, estava mesmo faminta, pois essa cena estava sendo gravada pela oitava vez e, a julgar pela expressão do diretor, seria ainda refeita algumas vezes. Fulana começava a despir-se com tal desenvoltura... Meu Deus! O diretor diz que não é assim que ela deve abrir o robe, soltar as alças e deixar cair ao chão a camisola.

- Isto está muito mecânico...

Fulana começa a reclamar.

- Olha, eu não sei mais o que você quer. Já tô de saco cheio de gravar esta cena. Não é possível que já não haja material para editá-la a contento...

- Ôpa, ôpa, ôpa! Você acha que eu estou aqui até essa hora sem comer só para ficar vendo você tirar e vestir essa maldita camisola? Eu tenho mais o que fazer...

A essa altura, o ator já se deitou sobre a cama, a aguardar que os ânimos se acalmem e ele mesmo possa ver-se livre desta cena que -, a fulana tem razão -, já deu o que tinha que dar. Fulana e o diretor fazem o gênero temperamental e, a gente sabe, dois bicudos não se beijam. Minto. Neste caso atriz e diretor vão muito além dos beijos e, desde que o mundo é mundo, a gente sabe que a intimidade é uma merda!

Fulana tem uma vida rastreada por fotógrafos e jornalistas, por isso a gente sabe também que, embora o affair com o diretor exigente, ela usa na mão esquerda um anel que ali foi colocado quando se casou com um certo figurão. Fulana não tinha uma vida tão imaculada assim. Até chegar ao altar e casar-se para usufruir regalias que nunca conhecera submeteu-se a outros papéis nada agradáveis. Hoje em dia ela até tira a roupa diante das câmeras, mas os papéis para os quais é escalada não se parecem em nada com as pontinhas baratas que a levariam a lugar nenhum.

O diretor está ciente do que tem em mãos. Literalmente. Fulana fora escalada quando o marido, agora amargando uma prisão especial, pedira pessoalmente o lugar de protagonista para ela. E não houve como dizer não. Ele dispensara uma excelente atriz, com a qual já estava apalavrado, abrindo espaço para Fulana. Prometera a si mesmo que, já que não havia outro jeito, transformaria a atuação de Fulana em trabalho digno de premiação. Empenhado nessa empreitada acabou se envolvendo com a mulher muito além do que gostaria.

Cicrano, o ator que agora contracenava com Fulana, pensara em desistir do papel quando soube que teria que contracenar com ela. Mas não é todo dia que ele pode participar de um trabalho com tantos profissionais de gabarito. Por isso, e apesar de Fulana, lá estava, com a barriga roncando, jogado na cama do cenário, esperando que o milagre acontecesse.

A voz possante do diretor serviu para acordá-lo.

- Vamos lá, pessoal! Tudo de novo... Cicrano colocou-se de pé, passou rapidamente as mãos nos cabelos para mantê-los despenteados como a cena o exigia. Fulana já estava bem à sua frente....

- Atençããão... Ação!

Fulana refez a cena mais onze vezes. Cicrano assim, tão pertinho, já sabia de cor cada pedacinho do corpo de Fulana. Ao dar por encerradas as gravações daquele dia, foram distribuidos os textos para as próximas cenas e o diretor informou que havia decidido gravá-las dois dias depois.


Cicrano chegou cedo. Ia ser mais um dia daqueles e ele não estava disposto a ouvir repreensões de quem quer que seja. Mas no estúdio havia um grande burburinho.

- O que está havendo? - perguntou à maquiadora.
- Fulana foi espancada pelo marido e vai ficar de molho por um bom tempo...
- O que você está me dizendo?... Mas ele não estava preso?
- Saiu ontem. Dizem que chegou em casa e pegou Fulana na cama com um amigo...
- Eita, que esse "roteiro" está me saindo melhor do que o que estamos filmando...
- Estávamos! Diante dos acontecimentos a produtora cancelou o projeto.


ju rigoni



Praceando...

Importante era viver. Intensamente. Tanto assim que ele já fora boy, sorveteiro, administrador de empresas, bicheiro, advogado, engenheiro, e tudo que a malandragem permitisse. Vendera automóveis, maconha, chiclete, avião, caneta, e navio. E estivera em muitas partes do mundo, inclusive num presídio. No momento, cismava sentado num banco de praça, à sombra de uma árvore, ávido por novas emoções. O olhar,- um radar-, girava tentando captar onde estaria o início de uma nova aventura.

Viu a igrejinha no centro da praça. Pedintes e beatas contritas. Ao redor, homens montando barraquinhas e moleques que pendiam dos galhos das árvores próximas amarrando fios repletos de bandeirinhas coloridas.

- A noite vai ser de festa...-, pensava. E deve ter considerado essa possibilidade durante algum tempo. Mas descartou-a porque continuava a olhar à sua volta.

Um vira-latas passou correndo atrás de um gato e a meninada ao redor da
carrocinha de pipocas agitou-se.

- Pega! Pega!

O gato,- um raio! -, atravessou meia praça, alcançou o coreto e sumiu entre as pernas dos músicos de uma bandinha que afinava os instrumentos para o ensaio.

Os acordes da primeira marchinha fizeram-no rir. A música trazia à lembrança um de seus golpes favoritos. Ele adorava quando o confundiam ou comentavam sua semelhança com Chico Buarque. Vez por outra, em nome da picaretagem, arriscava até um parentesco. Isso quando não tentava passar pelo próprio. As mulheres choviam...

- Você também compõe?
- Assim, assim...
- E canta?
- De vez em quando...

E elas em coro, o tom quase choroso:

- Ah, canta umazinha, canta?...

Ele não se fazia de rogado e soltava a voz para desespero de suas ouvintes que, ao primeiro agudo, descobriam que o "primo Chico" era bem melhor.

Aqui, na praça, o som que o cheiro do churrasquinho provocava em seu estômago estava em total descompasso com a música da bandinha. E não poderia ser de outra forma, pois ele não comia desde o dia anterior. Andara "aprontando" numa cidadezinha perto daqui e, na pressa de fugir, abandonara o produto do serviço. Resultado: estava com fome e sem dinheiro.

Chegara ontem à noite. Dormira no mesmo banco onde está sentado agora. Acordara com o som das tesouras aparando a hera do jardim.

A barriga voltou a emitir aquele som curto e grave, e a mocinha sentada no banco em frente sorriu para ele, que reconheceu nela dezenas de outras mocinhas. Por isso, é claro que, apesar do desconforto, ele sorriu de volta.

Mutreteiro de fé, é preciso admitir que era um homem bonito! Facilidade de comunicação, charme, e uma expressão carente que, ao primeiro contato, fazia despertar nas mulheres o instinto maternal. Macaco velho, toda vez que encontrava alguém que o agradasse, armava logo a cara do filho sem mãe. Como por exemplo agora. E como a moça insistia em sorrir, levantou-se devagar, (para não assustar a presa!), andou lentamente até o banco onde ela estava e sentou-se.

Não se sabe o que disse a ela. Mas comeu pipoca, tomou sorvete, devorou churrasquinhos no espeto, andou na roda-gigante e, à noite, na festa da paróquia, ele e a moça eram apenas mais um casal passeando de mãos dadas, trocando beijinhos e juras de amor, - que ele não era bobo e não ia deixar aquela pracinha fora das suas histórias mal-contadas!!!

ju rigoni



Singular, Plural...

Deve acontecer com todo mundo. É uma situação terrivelmente constrangedora encontrar alguém de quem não se consegue lembrar o nome. Toda vez que isso acontecia Ester sempre achava que tinha alguma coisa a ver com o fato de haver passado dos cinquenta.

Não tem muito tempo estava sentada na areia da praia, bem pertinho de onde quebravam as ondas do mar, e lá vem uma moça, muito bonita, que não lhe parecia estranha, andando em sua direção. Embora, a familiaridade fisionômica, virou o rosto em direção ao mar e continuou em suas eternas contemplações. Mas o afundar de passo-pós-passo na areia não deixou dúvidas. Era com ela.

- O que há? Não fala mais com os amigos?

Ester olhou diretamente para a recém-chegada, perscrutando cada detalhe daquele rosto, fazendo a maior força para lembrar o nome...

- Olá, como vai? Sabe como é... tava aqui pensando na vida.
- E como estão os filhos?...
("Ai, meu Deus, eu também vou ter que perguntar por alguém da família dela?")
- Eles estão bem. Na verdade, ótimos. Todos às voltas com os estudos.
("Preciso tentar fazer com que me dê uma dica preu lembrar o nome dessa cristã...")
- E você o que me conta de novo?
- Só o meu casamento...
- Ora... casou-se?
- Ainda vou casar. Foi até bom te encontrar porque quero o endereço pra enviar um convite.
("Meu Deus, quem é essa mulher? Eu sei que a conheço bastante. Por que não consigo lembrar?...")
- Mas, é claro. - E enquanto busco papel e caneta na bolsa de praia, sigo outro caminho para tentar desvendar o mistério.
- Faz tempo que a gente não se vê, hein?...
- Nem tenha dúvida. Da última vez foi no aniversário do Bob, lembra? Eu fui com uma turma enorme, - o Roberto, o Claudinho, o Anselmo, a Dina...
("Iiiih! Eu me recordo dessa festa. E lembro dessa turminha também. Só não consigo me lembrar dela...")

- É mesmo. Foi um festão aquele!

A amiga sem nome inclina a cabeça e proteje os olhos que observam além dos
ombros de Ester...

- Essa que está vindo aí não é uma de suas filhas???

Ester olha imediatamente na direção indicada como quem busca um salva-vidas.
("Ai, meu jesus! Que bom! Minha filha há de lembrar-se... Serei salva!")

- Oh, sim. É a minha filha.

Laura já vem chegando.

- Oiiiiii!, - cumprimenta, - há quanto tempo, hein...
- Puxa, você está a mesmíssima coisa. Não mudou nadinha desde a última vez em que a vi.
- Bem, não posso dizer o mesmo de você, - diz Laura sorrindo.
("Por que? O que ela vê que eu não vejo?")

A amiga sem nome exibe um sorriso quase cúmplice para Laura. Ester percebe que, (salvo engano), desde que chegou, Laura olha para a sua amiga "de infância" com um ar de surpresa capaz de competir apenas com o seu constrangimento pelo fato de estar até agora conversando com "uma grande amiga" cujo nome não recorda. E o papo segue, cheio de intimidade, (era certo que ela sabia bastante sobre a sua vida e a de Laura), mas sem revelar uma única dica que permitisse a Ester chamá-la pelo nome, ou construir conceitos acerca dos penduricalhos de sua árvore genealógica. Nada!

- Nossa! Olha lá o amigo que veio comigo à praia. O papo está ótimo, mas vou ter que deixá-las para ir ao encontro dele. Vou pegar uma carona e ele vai embora daqui a pouco.

("Ufa! Que alívio...")
- Que pena! Nem deu pra gente conversar muito...
- Pois é! -, exclama a ainda anônima amiga "de infância" distribuindo beijinhos em nossas faces com a maior intimidade e já refazendo a trilha na areia.
- Beijos, meninas! Quero vê-las em meu casório, hein?...
- Tá legal! Vamos ficar aguardando o convite formal.

Ester e Laura entreolham-se de modo cúmplice, aguardando a distância necessária as primeiras observações.

- Mãããe?! Que coisa surpreendente!, diz Laura.
- Como assim? Eu estou aqui, em cólicas, esperando que você me revele o nome desta minha amiga, que tão bem nos conhece, e de quem eu não consigo lembrar de jeito nenhum...
- Tá doida, mãe? Não é amiga.
- Nããão???
- Não. É amigo.
- Como assim?, - repito a expressão do momento, enquanto Tico e Teco tentam dar início a um processo qualquer de reconhecimento de território para colocar as coisas em seus devidos lugares.

- É o Lula, mãe! Nosso amigo lá do salão de beleza...

Sabe aquelas animações virtuais onde toma-se o rosto de uma pessoa e rapidamente vai-se trocando os tipos de cabelo, nariz, boca, roupas etc?... Ester ficou mais ou menos assim por alguns segundos até que...

- Claro! Gente, eu adoro o Lulinha. Sempre adorei esse amigo. Eu sabia que ele era homossexual, mas não tinha idéia de que o fato provocasse mudanças tão radicais em sua vida. Não foi só uma opção sexual... Nooossa, eu tinha tanta coisa pra dizer pra ele, depois de todo esse tempo sem nos ver... Ai, que mico! Eu não consegui fazer essa conexão. Não me lembrei de jeito nenhum...
- Mãe, você sempre teve uma bola de menos... Acho que ele nem notou.
- Ah, que pena. A gente sempre trocou tanta figurinha lá no salão... E ele ficou uma mulher bem bonita, hein? Não dava mesmo pra reconhecer... Não tinha mais pomo de adão, não tinha mais a voz grave... será que ele tirou o pênis também?... Uuuui! Só de pensar me dá um nervoso... Ele é corajoso mesmo, hein? Tem que ser muito homem pra isso... Mas que ele ficou uma mulher muito linda, não há a menor dúvida... Ou ela? Eu nem sei como é que o meu amigo prefere que o chamemos agora...

Laura ri das inseguranças da mãe.

- Você também, hein Laura... Podia tê-lo chamado pelo nome uma única vezinha. Assim alguma ficha caía, aqui dentro, na minha cachola...
- Eu hein, mãe! Como é que eu vou chamar de Lula uma pessoa que mudou de modo tão visceral? Eu poderia até ofendê-lo! Eu sei lá qual é o nome dele agora...
- Ah, a gente se conhece bastante, amor. Ele não ia ligar não. É um homem muito inteligente e sensível. Aí... Já tô chamando ela de ele outra vez...
- Mãe, você não existe!
- Bem, já que o nome eu só vou saber mesmo quando o convite chegar, que tal um mergulho?

ju rigoni



Sutileza e Poder
(Baseado em história real)

N.A. Os nomes que aqui aparecem foram trocados para evitar outros "toques" sutis.

A sala estava na penumbra. A noite estava próxima e, ao fim da reunião, ele,
pessoalmente, deu-se ao trabalho de apagar a maioria das luzes.

Agora, estava sentado à cabeceira da longa mesa retangular, - que ainda exibia copos, xícaras, cinzeiros repletos de pontas de cigarros, e rabiscos sem importância, abandonados sobre os blocos postos à frente de cada lugar.

- Boa noite dr. Midas! Podemos?...

Como não houvesse resposta, Rosa, a supervisora do pessoal de limpeza, fez um sinal à outra moça para que também entrasse, e iniciaram ambas a arrumação da sala que se dividia em dois ambientes: este, onde permanecia pensativo, apático, o poderoso Midas Albuquerque, largado sobre a cadeira de espaldar alto, que fazia com que ele parecesse mais baixo do que era; e o outro lado do grande cômodo, que guardava sua mesa de trabalho, sobre a qual estavam o celular, - como sempre desligado -, e o lap-top.

Na lateral da mesa o micro, a impressora, alguns documentos espalhados, e a foto mais recente dos três filhos. Uma outra foto, - a da esposa, sorridente e com ares esportivos - , estava sendo colocada de volta ao seu lugar pela moça que acabara de tirar-lhe o pó.

Sobre a estante, livros conviviam com um micro-system, muitos cds, alguns dvds, uma TV, um vídeo.

Diligentes, as moças se esforçavam para deixar a sala limpa e arrumada sem incomodar o patrão.
- É um saco quando a gente tem que limpar com eles dentro...", resmungava Rosa, baixinho. E ligando o aspirador:
- dr. Midas, vamos precisar fazer um pouquinho de barulho...
Rosa pensou ter ouvido ele dizer qualquer coisa. Olhou em sua direção, mas como sempre, ele estava lá, a pensar, pensar, e ela imaginou que nem mesmo uma banda conseguiria o milagre de arrancá-lo dos pensamentos.

Um rapaz empurrou a porta de entrada, para deparar-se com aquela cena de puro non-sense: o dr. Midas sentado à cabeceira da mesa de reuniões, mão no queixo, imóvel, olhar estático, - parecia em alfa -, Rosa a recolher copos, cinzeiros e xícaras, enquanto a companheira sugava a poeira -, tudo ao som de um aspirador de pó profissional.

O recém-chegado, - na verdade um office-boy que fora incumbido de alertar o dr. Midas sobre o avançado da hora, bem que tentou, mas viu que era inútil chamar por ele dali, da porta.

Entrou, chegou bem perto.
- dr. Midas? dr. Midas? O senhor pediu para lembrar o horário do jantar com o senador...

Midas continuava imóvel. O boy, cauteloso, continuava tentando.
- dr. Midas? O jantar com o senador..., tá na hora..., dr. Midas?
E nada...

Rosa olhava de soslaio a aflição do rapaz, um moreno de quase dois metros de altura e muitos músculos que, neste instante, sacudia uma das mãos para cima e para baixo, em frente aos olhos do dr. Midas, para ver se o tirava do transe.

"Esse homem quando pensa entra em coma".

A companheira de Rosa desligou o aspirador, exatamente no momento em que, espremido sob o peso da responsabilidade de lembrar ao dr. Midas o importante compromisso, recomeçava a chamar por ele, desta vez em tom de súplica:
- dr. Midas? O senhor vai perder o jantar... dr. Midas? O senador...
Os olhos de Midas finalmente situaram-se. O rosto endureceu, crispou-se.
Pôs-se de pé e olhou na direção do funcionário.

- Por que está gritando deste jeito? Está achando que eu sou surdo???
O grandão arregalou os olhos sem entender absolutamente nada.
- ... se é preciso fazer todo esse barulho só para me lembrar a hora de um jantar?... Não sabe bater à porta?...

O garotão, entre surpreso e incrédulo, não conseguia articular palavra ou gesto, enquanto o poderoso Midas Albuquerque colocava o celular, ainda desligado, no bolso, pegava o lap-tope saía da sala resmungando.
- Era só o que me faltava...

O office-boy moveu-se, então. Andou até a cabeceira, e caiu na cadeira, onde minutos antes estava sentado o patrão. Apoiou o cotovelo na mesa e o queixo na mão. E ficou lá... Perdido. Imóvel, estático.

Rosa e sua companheira, que a tudo presenciaram como se lá não estivessem, olhavam penalizadas para o rapaz.

- Coitado!, lamentou a companheira de Rosa, enquanto ligava o aspirador-, desta vez sem que precisassem pedir licença para terminar a limpeza da sala.

ju rigoni

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