17/06/2007

Nas Asas do Pânico



Detesto voar. Refiro-me, é claro, a tirar literalmente os pés do solo usando para tanto este veículo inacreditável chamado avião. Mesmo assim, por conta das viagens a trabalho, consegui acumular ao longo da vida inúmeras horas de vôo.

Eu trabalhava no Rio, como coordenadora de criação na house-agency de uma grande empresa na área médica, cujo vice-presidente estava muito bem informado sobre a minha fobia. Por isso, quando havia reuniões em São Paulo, para que eu não tivesse tempo de comprar passagem para o trem noturno, ele só me informava por telefone, e sempre após as 21 horas.

- Amanhã às sete, no Santos Dumont. Sua passagem já foi reservada.

Pronto! Era a senha para que eu me transformasse em alguma coisa parecida com um zumbi. Não dormia. Não comia. Entrava em pânico. Pensava em tudo, menos na pauta da reunião.

Não! Não pense que o meu superior hierárquico fazia isso por pura maldade. Ele apenas exercitava-se na arte de me convencer de que avião é o veículo mais seguro do mundo e dessa maneira pensava auxiliar-me na conquista de um maior domínio sobre mim. Assim, passei alguns anos entrando e saindo de aviões e ouvindo todo tipo de piadas de colegas, que insistiam em contar os casos mais escabrosos da história da aviação justamente quando estávamos passando por alguma dificuldade durante o vôo como, por exemplo, uma zona de turbulência.

Conheci o enredo de todos os filmes do tipo "Aeroporto", e todas as piadas envolvendo aeromoças, pilotos, comissários... Bem, essa minha "carreira", encerrei-a no início dos anos noventa, após um vôo São Paulo-Rio.

Naquela noite, como em tantas outras, o telefone tocou para tirar-me o sono. O vice-presidente havia me matriculado em um novo curso, e estava ligando para informar que o dia era amanhã, o vôo estava marcado para as sete horas, e meus companheiros de viagem e de curso seriam Alfredo e Ricardo.

Às sete em ponto, lá estávamos no aeroporto. Eu com aquela sensação já tão conhecida de peso nos ombros, dor nas costas, pálpebras caídas, enfim, todas as conseqüências de uma noite mal dormida.

O vôo de ida transcorreu normalmente, sem qualquer problema, a não ser o de sempre: as mãos geladas pelo pânico e aquela "acomodada" estranha que desestabiliza momentaneamente a aeronave quando ela está preste a aterrisar no aeroporto em São Paulo. Os três dias de curso também iam bem, obrigada! Exceto pelo fato de que tendo eu ido para São Paulo era impossível ignorar que logo, logo teria que retornar ao Rio. E de avião! Não fosse esse pensamento onipresente e eu teria, com certeza, um rendimento ainda maior em todos os cursos que fiz naquela e em outras cidades; e minhas pautas de reunião seriam mais ricas e produtivas.

Sexta-feira, fim do curso, 18 horas (leia-se rush). Eu e meus companheiros estamos dentro de um táxi, na Avenida Treze de Maio, indo em direção ao aeroporto. De repente, um som surdo e todos, - motorista, amigos e eu -, em apenas alguns segundos, somos projetados para frente e para trás. Quando consigo me recuperar do susto, passo a mão pelo corpo para avaliar possíveis estragos, pergunto ao motorista e aos colegas se estão bem, e constato um tanto aparvalhada que escapamos de alguma coisa que poderia ter sido importante. Alfredo é o primeiro a sair do carro já estacionado no canteiro central da avenida engarrafada. Balança os braços de modo um tanto descoordenado, enquanto desabafa:

- Tá vendo? Você aí preocupada com o avião e é no táxi que nós tomamos uma porrada...

O motorista avalia os estragos e diz que não vai poder continuar. Passamos um longo tempo à beira da calçada, tentando arranjar um outro carro. Sinto-me cansada. O susto provocado pela batida faz com que, temporariamente, me esqueça da aeronave onde vou estar sentada daqui a algum tempo. Algum não... Muito tempo. Porque só uma hora e meia depois, é que conseguimos um outro táxi para nos levar ao aeroporto.

Já no avião, aperto o cinto e rezo agradecendo a Deus pelo acidente não ter tido conseqüências mais graves, e pedindo a Ele que nos conduza em segurança até nosso destino.

Durante o vôo, chego a dormitar por cerca de 10 minutos, fato jamais constatado em minha história particular. Alfredo e Ricardo dizem que finalmente estou perdendo o medo. Olho através da janela e já posso ver, lá embaixo, o colar de luzes da ponte Rio-Niterói. O comandante despede-se anunciando a aterrisagem. Sentimos quando o avião toca o solo do Aeroporto Santos Dumont. Respiro fundo e, nem bem terminei de dizer o habitual Graças a Deus! sinto aquele vazio que se produz em meu estômago quando o avião sai do solo. Pela janela confirmo incrédula que o avião voltou a levantar vôo. Olho a-pa-vo-ra-da para o meu colega e digo qualquer coisa como hoje não é o meu dia. Ouço uma voz conhecida perguntar várias vezes, em alto e bom som, o que está acontecendo e só me dou conta de que a voz é a minha quando Alfredo tenta me acalmar:

- Isso não é nada! De vez em quando acontece... Fica calma!

Recorro mais uma vez à janela e dou crédito ao meu colega de trabalho, pois afinal, lá está de novo a ponte Rio-Niterói e o avião já inicia a descida, desta vez sem qualquer mensagem do comandante. A nave toca o solo, digo Ufa!Ainda bem! e sinto novamente aquela sensação de vazio. Lá vamos nós de novo para o espaço!

Na quarta tentativa de pouso a retórica do meu amigo já não fazia sentido nem mesmo para ele. E o diabo é que a aeromoça ficava passeando pelo corredor com aquele sorrisinho do tipo "não está acontecendo nada demais", e o comandante não dava nenhuma satisfação aos passageiros. Pode um negócio desses? Na quinta tentativa eu estava com os nervos em frangalhos. Já tinha rezado todas as orações que conhecia, e meus colegas estavam tendo sérios problemas para me manter sentada em minha poltrona, porque quando fico excessivamente nervosa sofro de ânsia de movimentos.

A aeromoça parou junto de nós:
- Posso ajudar em alguma coisa?
O Ricardo ia dizer algo, mas eu fui mais rápida:
- Pode sim! Vai lá na cabine e diz pro piloto botar esse avião no chão agora. Já!
A aeromoça olhou para o Alfredo:
- Quer que eu traga algo para acalmá-la? Quem sabe um chazinho?...
Eu nem deixei que ele respondesse.
- O que eu quero é que esse avião desça imediatamente.
Alfredo fez um sinal para que a aeromoça se retirasse e tentou mais uma vez convencer-me de que estava tudo bem.
- Fica calma! Você acha que se isso fosse importante os outros passageiros também não iriam entrar em pânico? Ouve só... Aí atrás tem até gente rindo e rindo muito.

Voltei-me para a fileira de poltronas imediatamente atrás das nossas a fim de descobrir de onde vinha toda aquela alegria. Deparei-me então com uma cena, no mínimo, insólita. Uma mulher que transpirava por todos os poros, e se remexia o tempo todo em seu lugar, ria, ria e ria de nervoso, enquanto seu parceiro abanava freneticamente uma revista, tentando providenciar um pouco mais de ar para a pobre coitada.

- Alfredo, a mulher não está rindo, está tendo um ataque histérico! - alertei, como se eu própria não estivesse totalmente fora de mim.

Ah, meu Deus, será que havia chegado a minha hora? Nããão. Não era possível! Eu ainda nem havia feito tudo o que queria fazer neste mundo... O pânico total em que me encontrava fez com que eu, como num cinema, assistisse ao "filme" da minha vida em apenas alguns segundos.

Finalmente, o comandante resolve falar. Diz, com aquela voz meio esganiçada (que lembra a de pilotos de Fórmula 1), que ele vai desistir do pouso no Santos Dumont; que já recebeu permissão para pouso no Aeroporto Internacional; que já estamos nos encaminhando para lá; que a companhia aérea fornecerá aos senhores passageiros o transporte do Aeroporto Internacional até o Aeroporto Santos Dumont; que a pista do Internacional é longa e vai permitir que a aeronave possa aterrisar em segurança, - sem os problemas que estão sendo causados pelo motor de reversão.

Quero imediatamente saber o que é motor de reversão e armo outra confusão. Ricardo explica que corresponde ao freio da aeronave e eu descubro que preferiria não ter sabido.

Quando estamos prestes a descer a aeromoça pede que mantenhamos a calma e que, apenas por uma questão de segurança, abaixemos nossas cabeças, colocando-as sobre as pernas. Eu, que já assisti essa cena em algumas daquelas fitas catastróficas das quais falei lá no início da história, já estou no meu limite. Perco o controle e para que conserve a minha cabeça ao colo é preciso que um de meus colegas segure-a firmemente com as mãos, mantendo-se ele também na posição recomendada pela tripulação.

O avião toca novamente o solo e eu aprendo na prática o que é eternidade. Durante muito tempo taxiamos pela pista. Primeiro, em altíssima velocidade, depois, um pouco mais devagar.

Faço um monte de promessas: vou parar de fumar, vou acender uma vela do meu tamanho pra São Judas Tadeu, vou subir as escadas da Igreja da Penha e do Corcovado de joelhos, vou levar flores pra Iemanjá, vou arriar um ebó pra mamãe Oxum...

De repente, um silêncio, uma imobilidade total. Uma fração de segundo e eu não posso deixar de pensar: "Ou eu morri, ou o avião... - Santo Deus, o avião parou!"

Estou estatelada pela boa-nova e para sair da posição preciso da ajuda de meus companheiros nesse titanic aéreo. Tonta, a passos incertos, consigo finalmente sair da máquina.

Num Bar-Café do Aeroporto tentamos nos refazer da maratona. Alfredo e Ricardo disparam o riso e agem como se não tivéssemos vivido uma variação do roteiro de "Um Dia de Cão". Como se nada tivesse acontecido, embora eu tenha observado, nos momentos críticos, o suor nervoso escorrendo pela testa de um e o piscar acelerado dos olhos do outro.

Os rapazes adiantam-se para pegar a van que faz o transporte de um aeroporto ao outro. Estanco em meio ao saguão:
- O que foi? Você não vem? - pergunta Ricardo.
- Vão vocês. Hoje eu não entro mais em nenhum veículo. De qualquer natureza!...

Acendo um cigarro, com a sensação estranha de que me havia esquecido de alguma coisa, e vou dormir no Hotel do Aeroporto com a certeza de que, dali por diante, as únicas asas sobre as quais voaria seriam as da minha imaginação.

ju rigoni


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