10/06/2007

Quem Conta Seus Males Espanta...



Na final da década de 70 trabalhei numa gravadora onde tive a chance de conviver com algumas das estrelas da nossa música. Tempo de colecionar histórias sobre íos dolos da mpb e os executivos que estavam por detrás de suas carreiras, histórias que jamais vêm a público.

Trabalhava-se com música e por isso trabalhava-se com prazer. Mas o ritmo do dia-a-dia de uma gravadora era, (acredito que ainda seja), no mínimo, alucinante. Milhões de detalhes a serem observados para que o disco de um determinado intérprete fosse um sucesso de vendas. Para a gravadora, por mais talento que tivesse, o ídolo queria dizer única e exclusivamente números. E números bem grandes. Caso contrário ele poderia voltar pra casa e continuar cantando para o sabonete e a torneira do chuveiro.

Por tudo isso, quando a gravadora planejava o lançamento de um disco, o artista tinha que estar preparado para, sempre ao lado de um promotor ou divulgador, cumprir, junto a mídia e ao público, todas as suas etapas por mais difíceis que elas parecessem.

Em alguns casos essas exigências esbarravam em questões pessoais sérias. Há, por exemplo, o episódio envolvendo aquele compositor e cantor mineiro que não embarcava em avião de jeito nenhum. Assim, quando lançava um disco, entrava no carro e vinha de mala e cuia para o Rio. Era preciso divulgar a música de trabalho. Hospedava-se e ia ficando no Rio, visitando rádios, dando entrevistas a jornalistas e apresentando-se nos programas de tv. Terminado o trabalho, começava tudo de novo em São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, enfim... em todas as cidades onde divulgaria o disco. Por causa da sua fobia, saía sempre com a antecedência possível, viajando por terra. Entretanto, vez ou outra, apareciam shows de última hora, ou compromissos urgentes marcados pela gravadora, e aí era impossível driblar a viagem de avião. Os contratos eram rigorosíssimos.

Numa dessas ocasiões, ele, que sempre curtiu um uisquinho caubói, entornou meia garrafa acreditando que, desse modo, conseguiria encarar o vôo. Tropeçando nos próprios pés, apoiado no divulgador que o acompanhava, entrou no avião. Famoso, apesar do bafo de bêbado que parecia exalar de todo o seu corpo, ia sendo saudado por todos os passageiros e paparicado pela tripulação. Olhar vermelho e a meio palmo, ele parecia calmo, resignado, e até deu dois autógrafos a duas crianças que a ele vieram. Quando o avião começou a taxiar buscando a pista por onde levantaria vôo, ele espremeu-se contra o espaldar da poltrona e pareceu rezar. Mas o avião, de repente, deu meia volta e foi parar novamente no mesmo lugar de onde saiu. O comandante informou aos passageiros que seria necessário que desembarcassem e aguardassem porque talvez tivessem que mudar de aeronave.

Nosso artista desceu, aliviado, as escadas do avião e o divulgador até pensou que ele iria beijar o chão. Foram ambos aguardar em um bar-café do aeroporto, e quando a voz da locutora ecoou chamando novamente para o vôo, nossa celebridade saiu correndo pelo saguão. O divulgador, atrás. Lá fora, o vento batendo forte no rosto, disse apenas:

- Vou não! Estou embriagado mas não estou morto. E quero que continue assim.

Voltaram para a gravadora. Como não havia mais lugar disponível em outro vôo para a tal celebridade, e era preciso cumprir o compromisso, deram a ele a garrafa de um outro importado e empurraram-no, bêbado como gambá, para dentro de um táxi aéreo.

Outro caso é o do executivo que diziam que pirou.

Por detrás do aparente charme e alto astral exibido pelos super executivos do mundo fonográfico, muita inveja, muita competição. Pelo menos naquela época, era um querendo engolir o outro para galgar mais um degrau e alcançar um bom conceito no mercado internacional. Por isso, tinham que estar ligados o tempo inteiro. Muitos deles chegavam ao trabalho as sete da manhã, passavam o dia recebendo gente, indo aos estúdios para resolver problemas, fazendo pequenas viagens e falando ao telefone. Principalmente falando ao telefone. Não. À noite esse executivo executado não ia para casa descansar. Seria um risco. Porque as conspirações ocorriam também fora do horário de trabalho. O executivo da música jamais encerrava o expediente. Saia da gravadora e ia com os colegas de trabalho para um restaurante onde bebiam, jantavam e falavam de trabalho todo o tempo. Após o jantar, alguma estréia, ou qualquer outro show que estivesse em cartaz. Depois, claro, o camarim. Em seguida, corriam a um bar da moda para comemorar. Eles estavam sempre juntos. Não por admiração ou amizade. Mas para que os companheiros de lida não tivessem tempo de conspirar.

Assisti a "crucificação" de um deles. De um dia para o outro, correu na gravadora uma história para derrubá-lo. Diziam que ele estava maluco e que, inclusive, passara a consumir drogas. Um rumor forte e maldoso que acabou por, realmente, interferir em sua personalidade. Era muito brincalhão, porém, o medo de que suas brincadeiras fossem interpretadas à luz dos boatos, foi tornando-o uma pessoa calada e até meio triste, - o que também acabou sendo julgado de maneira errônea.

Certa manhã, mal cheguei e já fiquei sabendo que haveria uma reunião e que seu destino seria decidido. Eu estava na porta da minha sala quando ele passou em direção ao elevador e acenou para mim. Estava com um ar esquisito e, por um momento, vislumbrei o mesmo brilho travesso que tinha nos olhos antes de todos esses problemas.

No final da tarde, encontrei um grupinho em frente à copa. Todos se escangalhando de rir. Quis saber do que se tratava.

- Imagine que o fulano entrou na sala de reuniões arrastando pelo chão uma guimba de cigarro amarrada a um barbante...
- Nossa! Será que ele pirou mesmo?
- Pois é! Já estavam todos por lá, só faltava ele. Dizem que ele ficou dando voltas ao redor da mesa de reuniões e todo mundo com cada olho deste tamanho...
- Gente! Eu não acredito...
- Pois pode acreditar! E quando o diretor perguntou a ele "o que é isso, Fulano??? Sabe o que ele respondeu?
- Fala logo, pô!
- "Tô puxando um fumo".
- E aí?
- Aí todo mundo caiu na gargalhada. Dizem que a reunião foi pro espaço por causa disso. Virou uma sessão de "causos" engraçados.

Eu tinha que rir. Conhecendo-o como eu o conhecia sabia que se tratava apenas de mais uma de suas ironias. Uma forma escrachada de protestar contra a barreira da maledicência que lhe fora imposta. Atitude, aliás, que de nada adiantou. Eu sabia que ele não era maluco, não fazia uso de drogas e tinha ambições honestas em relação a carreira que pretendia fazer por lá. Não demorou muito e foi muito sutilmente levado a retirar-se da empresa. Um outro, não sei se o responsável pelo boato, ocupou o seu lugar. Alguém que deu lugar a outro alguém que, por sua vez, também acabou derrubado.

Foi assim que aprendi que aquela música linda e tranquilizadora que a gente ouve e ama pode ter saído muito, mas muito mais cara do se imagina...

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