30/04/2006

Jogos da Memória II



Foto Bernardo Castanho


Na tarde de uma sexta-feira, depois de comprar tudo o que estava em sua lista, Ester saiu da rua Senhor dos Passos, uma das mais movimentadas da Saara, no centro do Rio de Janeiro, e tomou a direção da Praça XV. Tinha o hábito de pegar a rua do Ouvidor e depois uma das transversais que ligam à Sete de Setembro, onde já caminhava, cheia de sacolas, quando, de repente, alguém enfiou o seu braço no dela.

- Sorria! Continue andando. Faça uma carinha bem feliz. Não! Não olhe pra mim ou eu atiro em você e desapareço.

Quem a visse assim, de braços dados com aquele homem, - o cano da arma que ele segurava sob o que parecia ser um pulôver, apertando suas costelas do lado esquerdo -, juraria que tratava-se de um grande amigo. O homem queria que Ester fosse com ele ao caixa eletrônico para fazer saques de sua conta.

- Eu estou muito nervosa. Acho que não vou conseguir... Meus joelhos estão tremendo. Posso desmaiar em pleno banco.

- Então vai ser de outro jeito, lerdeza. Vamos indo...

Ester tremia mais ainda. Não alcançara aquele "então vai ser de outro jeito" e sua imaginação não a estava ajudando em nada.

Enquanto atravessavam a Primeiro de Março, percebeu, pelo modo como ele articulava as palavras, sempre lhe dizendo para não olhar na direção do seu rosto, que mantinha nos lábios um sorriso, o que disfarçava muito bem a situação. Nem sabia muito bem o que estava sentindo. Provavelmente estava sem cor, sem chão, embora o instinto de preservação a levasse a colocar um pé após o outro para alcançar qualquer lugar onde pudesse se ver livre do tal sujeito que tinha cheiro de lavanda, um hálito impecável, - ele falava bem junto ao seu rosto -, e, ela pode ver olhando de lado para baixo, calçava sapatos caros sob uma calça jeans que também parecia ser de boa grife. Seguiram assim, lado a lado, ele torturando seus ouvidos com palavras ameaçadoras, até mais ou menos o meio do Paço Imperial, onde não havia muita gente.

- Abra a bolsa naturalmente e me passe o dinheiro, cheques, cartões e tudo que valha alguma coisa. Anda, lerdeza! Eu não tenho muito tempo.

Ester tremia muito. Tanto que, ao abrir a bolsa, tudo caiu ao chão e ela, nervosa, sem aviso, abaixou-se para recolher os pertences. Junto ao solo deu-se conta do que havia feito sem pensar. Por um momento achou que ele fosse atirar e sair correndo e, ainda abaixada, chegou a apertar os olhos com medo do estampido. Mas o homem não fez nada disso.

- Anda lerdeza! Eu não tenho todo o tempo do mundo...

Levantou-se e, sem olhar o seu rosto, entregou-lhe o dinheiro, dois talões de cheques e os cartões. Ele então mandou que fechasse os olhos, e ela novamente assustou-se. Aí o filho da puta deu-lhe um beijo no rosto, dizendo:

- Agora vá em frente e não ouse olhar para trás. Eu não estou sozinho. Minha amiga está por aqui, observando. Anda! Xô! Vai, otária!...

Foi seguindo direitinho como ele havia mandado. Sentindo-se a mosca do cocô do cavalo do bandido. Humilhada, invadida, violentada como jamais fora em toda a sua vida. E ainda nem tinha idéia do que viria a seguir...

De repente, já estava em Niterói. Não sabia como havia arranjado dinheiro para pagar a travessia. Não lembrava se a havia realizado em aerobarco ou barcaça. Não se recordava do trajeto. Havia um branco profundamente negro em sua mente. Só conseguia ver-se andando nas ruas do Rio com aquele cretino. Num ato reflexo abriu a bolsa para pegar o celular e ligar para um dos filhos. Esquecera de que também ele fora levado. Alguma coisa estava acontecendo com a sua memória. Foi até um telefone público e... não se lembrava o número do telefone de casa ou dos rapazes. Sentou-se no banco de um shopping ao lado do terminal e chorou. Uma amiga viu Ester e sentou-se ao seu lado.

- Que foi que aconteceu? Você está chorando...

Ester olhou a amiga, mas não se lembrava dela, embora encontrá-la tenha sido a sua salvação. Pois a moça avisou os parentes e estes trataram de ir buscá-la.

Quando finalmente chegou em casa estava um trapo. Ficou dias e dias sem comer direito, sem dormir, sem trabalhar, preocupadíssima quando um dos filhos tinha que sair à rua... Desde então, sua vida é um tormento.

Aquele homem cheiroso, bem calçado, bem vestido e capaz de pronunciar frases inteiras sem qualquer erro de concordância, levou muito... Muito mais do que o seu dinheiro.

ju rigoni (sem registro de data)

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