08/05/2006

Intervalo Comercial



A mãe estava assistindo a novela das oito quando a bolsa rompeu e Arilda pode, finalmente, caminhar para a luz. Para a luz? Quando Arilda sentiu o gostinho do colostro a mãe se deliciava com uma novela.

Poder-se-ia dizer que Arilda reconhecera primeiro aquelas vozes eletrônicas. E em meio a elas a voz da mãe soava distante, estranha mesmo.

Fora assim também com os irmãos de Arilda. Não bastasse a sina, quase ganham nome de personagens dos tais folhetins, - sorte desviada pelo pai.

Arilda ia crescendo e as novelas na sala-de-estar de sua casa se sucedendo... Assim aprendeu a andar, a comer, a vestir-se, a amar, a transar, a agredir, a defender-se, a sorrir, a chorar...

Levando em conta a das seis, das sete, das oito e eventuais miniséries, ela acabou concluindo o primeiro grau em setenta novelas. O segundo em vinte. E levou mais ou menos uns cinquenta folhetins para concluir o curso de Cinema.

Passou quatro novelas estudando para um concurso público. Perdeu pelo menos quatro num mestrado.

Conheceu, namorou, noivou e casou em vinte novelas.

Trinta e cinco novelas depois já tinha três filhos.

O casamento de Arilda sofreu um abalo violento cerca de quarenta novelas depois do nascimento dos pimpolhos. O marido, que detestava novelas, arranjou uma amante. Enquanto Arilda se distraía em frente à televisão, ele curtia as delícias da cama da outra.

Arilda desconfiou da ausência constante do marido... Sempre na hora da novela das oito, - que começa quase às nove -, e houve por bem colocar em prática o que já vira em inúmeras histórias: contratou um detetive particular.

Não levou nem uma novela pra que, um dia, ela os flagrasse em pleno colóquio amoroso. Igualzinho a umas dez cenas que ela já assistira pela tevê.

Cinco novelas depois estavam divorciados, - Arilda com uma pensão que lhe permitiria, se quisesse, não fazer mais nada na vida que não fosse assistir novelas.

Ela, é claro, não estava feliz. Os folhetins sempre lhe ensinaram que não há vida sem amor e sexo. Mas Arilda embarrigara três vezes. Estava gorda, - passava a maior parte do tempo sentada diante do aparelho de tv assistindo às novelas e... mastigando. Sem parar. Pelo que ela aprendera de sedução, - todos sabemos aonde - ia ser bem difícil refazer a vida amorosa. Arilda estava muito longe do padrão de beleza das protagonistas que tanto admirava. Avaliava-se ao espelho. "Um lixo!", - era o que pensava de sua imagem.

O tempo passou. E Arilda tentou refazer o corpo para refazer a alma. Mas era praticamente impossível. Porque ela não podia viver sem novelas. E junto com elas vinha aquela necessidade avassaladora de comer pipoca, biscoito, chocolate, bala... qualquer coisa! Nem é preciso dizer quão infeliz Arilda se tornara. Nem mesmo "suas" novelas conseguiam levantar-lhe o ânimo.

Todos se lembram muito bem da Arilda...

Ontem ficaram sabendo que a amiga que viera ao mundo na primeira versão de O Direito de Nascer sofrera um infarto fulminante durante um capítulo de Cobras e Lagartos.

É... É triste mas a novela, digo, a vida continua...

ju rigoni

Nenhum comentário: