21/07/2008

Peneirando Areia...




O sol nem sonhava acordar e João já estava de pé, empurrando o barco para o mar com a ajuda dos filhos mais velhos. Sempre sonhou com esse barco que era tudo para ele. O sustento, a escola, a distração, a poesia... A vida! Partia todas as manhãs como quem vai ao encontro de um tesouro, sorrindo o sorriso feliz de quem já sabe de cor o caminho e as sinas possíveis. E quando certo dia alguém perguntou se gostava do que fazia...

- Peixes são estrelas no mar. Estrelas que não brilham na noite, mas sob o sol. Estrelas ao alcance da mão. Que alimentam corpo e espírito. Não desejo para meus filhos a mesma vida, não. Eu nasci e vou morrer pescador. Não sei se gosto, ou se me habituei a isso... Mas acho que não gostaria de fazer outra coisa...

Na pequena aldeia de pescadores diziam que João era "meio pancada". Na vendinha, entre uma e outra talagada de cachaça, ele era o assunto dos companheiros.

- O João num bate bem...
- Quê isso, Zé? Ele é só um poeta. Um cara que pesca palavra junto com peixe. Bão amigo, bão pai de família...
- Tá! Mas batê bem, num bate, não... Diz que os filho vai sê doutô. Vê se pode?!... Cum aquele barquinho que ele tem... Inda se fosse uma trainêra...

Certo dia, João arranjou com o amigo Tarrafa um restinho de tinta azul. Sentou-se na areia e passou a desenhar, cuidadosamente, numa das laterais da popa do barco, as letras do nome com o qual decidira batizar seu ganha-pão.

Todo mundo achou tão engraçado! E tão lindo... Como é que o João, com tão pouco estudo, conseguia encontrar palavras tão bonitas? De onde lhe vinham, assim, com aquela precisão, com aquela harmonia, aquela beleza?...

Por aqueles dias, andava pela aldeia um certo escritor, um tal Pedro que, diziam, morava junto da pedra grande. Não demorou muito para que Pedro notasse João. Encontrou o pescador terminando de pintar o nome do barco.

- O nome do seu barco é muito bonito. Onde você o conseguiu?
- Pensando...
- Você gosta de ler, João?
O pescador riu de lado.
- Às vezes eu até leio os livros de escola dos meninos, uma folha de jornal que vem no vento... Ou embrulhando alguma coisa. Se for disso que o senhor tá falando, leio sim.
- Vê televisão?...
- Eu tinha uma tevê preto-e-branco lá em casa. Achei jogada na areia, lá pro lado das dunas. O Zé Peça consertou. Minha mulher via as tais novelas na bichinha. Eu saio muito cedo pra lida, e quando chego tô muito cansado pra ficar olhando qualquer coisa... Mas um dia a tevê parou e não teve jeito de fazer voltar a funcionar...
- Você me parece um homem muito inteligente, criativo, apesar da rotina de pescador... Fala direitinho, sem muitos erros...
- Na minha vida, aqui, na aldeia, ouço muita história... Contadas por meus companheiros de sina, por gente que vem comprar o pescado, professores e alunos de escolas que vêm até aqui conhecer a aldeia... Também aprendo muito ouvindo os turistas conversarem. Só não entendo o que os gringos falam! Mas acho mesmo que tudo que eu sei é porque tenho bons olhos, bons ouvidos, e sou muito curioso...

Ao se despedirem, João sorriu um sorriso tão tranquilo... Uma paz que deixou em frangalhos os nervos do pobre Pedro.

Enquanto o pescador sentava-se, agora para remendar sua rede, o escritor tentava remendar os próprios pensamentos. João, que lia e ouvia o acaso, era tão cheio de certezas... Não parecia precisar de mais nada que não fosse o mar. Mais nada que não fosse a imaginação. A imaginação é mesmo mais importante que o conhecimento?, - Pedro se indagava. Bem, o conhecimento nunca lhe trouxera qualquer coisa parecida com tranquilidade. Aquela serenidade que ele leu sempre nos olhos de pessoas inteligentes como João mas que, por falta de oportunidades, viviam em territórios delimitados, muitas vezes por elas próprias.

Decidiu que escreveria sobre ele. João Poeta. Sim. Este seria o nome que o pescador teria em seu conto. Quanto ao título, estava pintado em azul no barco do pescador de "estrelas". Céu no Mar.

ju rigoni (1993)



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