04/10/2008

Singular, Plural II


Detesto supermercado cheio. Mas às vezes não tem jeito. A gente tem que encarar. Foi assim no sábado. Calor infernal, lancei uma havaianas, bermuda, camiseta, chapéu, - que não há quem resista ao sol forte, e lá fui eu...

Nem bem entrei, empurrando um carrinho de compras que conseguira quase a tapa, e cujas rodas não sabiam se iam para direita ou para esquerda, e ouço um psiu, psiu às minhas costas. Obviamente ignoro. Não sou mulher de psiu, porra! Então esses psius muito provavelmente não foram emitidos para chamar a minha atenção.

- Psiu! Psiu!

Droga, que insistência!... Por onde anda o dono (ou donos) desses psius que não responde?... Coisa chata! A gente fica o tempo inteiro achando que os tais psius são para a gente.

- Ei, Ester!...

(E não é que é comigo mesmo?...)

- Pois não!
- Você não está me reconhecendo?...

Putz! Não tem nada melhor pra te qualificar como decrépita do que essa maldita frase interrogativa.

- Sinceramente, não.
- Olhe bem! Eu deixo. - A fulana colocou a mão direita na cintura e deu uma voltinha, como a desfilar numa passarela.

Alguém no supermercado, atento a ceninha insólita, lembrou-se de emitir um fiu-fiu pro mico ficar bem sacramentado.

- Olha você me desculpe, mas eu não estou conseguindo lembrar de onde a conheço...
- Sou a Luísa, trabalhamos juntas há três anos.
- Aaaaaah... Menina, como você está diferente!

"Menina", foi forte. Porque Luísa regulava idade comigo e eu já ando para muito além dos cinqüenta. Aliás, essa pessoa aí não se parece em nada com a Lu, a companheira de trabalho que a moça afirmava ser.

Enquanto ela ia perguntando pelos meus filhos e dando conta de suas novas histórias, meus olhos, já míopes, perscrutavam cada centímetro do seu rosto.

Lembro-me que da última vez que a vi suas bochechas estavam a meio-palmo, o nariz andava um tanto caído e ao redor da boca havia aquelas linhas que anunciam o pôr-do-sol. Isso sem falar do excesso de pálpebra e daqueles raiozinhos ao redor dos olhos.

- ... bioplástica, você conhece? -, consegui finalmente ouvir do que ela estava dizendo.
- Puxa! Esse negócio deve ser muito bom mesmo. Não há dúvida de que deu um up em seu rosto.
- E não apenas no rosto, meu bem -, disse ela girando o corpo e exibindo o bumbum grande e empinado que, eu lembro muito bem, não estava ali antes.
- Olha, é um espetáculo! Você entra na clínica numa segunda-feira e na quarta já sai tinindo, prontinha para uma vida totalmente nova.
- Nossa! O negócio é bom mesmo, hein?...

Devo admitir que, sem qualquer exagero, minha antiga companheira de trabalho remoçou mais de vinte anos com essa tal bioplástica. E o que mais me espantou foi o fato de que, segundo ela, não há incisões, nem descolamento de pele, nem rosto enfaixado por dias e dias, nem cabelos raspados junto à orelha, nada disso. Mais ainda: o efeito é muito natural: sem aquele estica-e-puxa que a gente vê por aí. Luísa conta que tudo é decidido e levado a efeito de modo imediato. Num computador, o médico vai trabalhando sobre a foto da paciente.

Por exemplo, para refazer o contorno da face, (colocar as bochechas no lugar), ele vai simulando as várias formas até que a paciente descubra aquilo que deseja. Aí então, após uma pequena anestesia, ele injeta numa camada profunda da pele, um troço chamado (não tenho certeza se vou escrever corretamente) metacrilato. Imediatamente após as aplicações, que duram poucos minutos, a paciente já vê o resultado ao espelho, podendo discutir com o médico uma ou outra modificaçãozinha aqui ou ali.

Caraca! Acho que meu rosto deixou claro o quanto fiquei impressionada com aquela exposição, assim, no meio da tarde, as mãos segurando o queixo, cotovelos apoiados no carrinho de supermercado. Luísa entendeu que, talvez, eu estivesse disposta a me submeter a tal intervenção estética, o que fez com que eu me acreditasse a mosca do cocô do cavalo do bandido.

-... Se você quiser, eu ligo depois e te dou o telefone do médico. Você vai adorar. Ele "passa" a maior confiança.
- Bem, querida, ficaria difícil para qualquer pessoa entregar-se aos cuidados de um médico no qual não confiasse, não é mesmo?... O papo está bom e você está realmente muito bem, mas eu preciso encarar este supermercado. O carrinho ainda está vazio. Estou conversando com você desde que cheguei...
- Ta certo! Té mais! Eu te ligo, ok? Ah, mas foi tão bom te ver...

Alguma coisa me diz que este "foi tão bom te ver" não veio de graça... Mas não me importo. Lembro-me de quão difícil era para meus companheiros de trabalho conviver com Luísa, pessoa muito ligada em amenidades e pouco afeita a qualquer assunto que a fizesse pensar. Depois fico me imaginando com aquela carinha tão mais jovem... Será que eu me reconheceria?

Passo em frente a uma vitrine da seção de eletrodomésticos do supermercado e olho meu rosto e corpo refletidos nela. Acho que eu sentiria muitas saudades de mim assim como eu sou mesmo. Talvez eu injete um botoxzinho aqui e ali... mas esse tal de metacrilato me devolveria a um tempo que, provavelmente, não tem mais muito a ver comigo.

Quanto à Luísa, talvez esteja precisando mesmo é de um metacrilato no cérebro...

Credo! Como o tomate está caro!!

ju rigoni
(sem registro de data)

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